O tempo provavelmente estava congelado. O espaço simplesmente não mudava, em ambos lados o deserto do oceano azul, refletindo o fim da tarde. Meus pensamentos mergulharam no horizonte vasto, meu tédio abria portas para instantes monótonos e falta de ar, vista pesada e boca paralisada. Apenas uma voz tentava me trazer de volta, e após umas tentativas, em um tom firme, fora bem sucedida.
- Você está bem?
Retomando-me à consciência, olhei para o banco do lado e notei que um dos passageiros havia sentado ao meu lado. Minha vontade era de permanecer quieto, entediado e sozinho. Não queria conversar com ninguém, especialmente alguém que não sabia tomar conta da sua própria vida. Mas vestindo minha “máscara social” resolvi responder a pessoa.
- Sim... – Respondi de forma a observar os traços da pessoa, e notei que estava ao meu lado, uma garota de boa aparência, com cabelos e olhos escuros, trajando roupas comuns. Julguei que ela deveria ter 15 anos, principalmente pelo tipo de corte de cabelo, que realçava o rosto, sem as cicatrizes da idade.
- Você parece cansado.
A boa aparência provavelmente ocultava uma cabeça que jorrava pensamentos fúteis.
- Sim...
- E por que você não dorme? Estamos nessa viagem há mais de uma hora.
- Eu poderia... mas meu corpo não quer.
- Basta encostar a cabeça.
- Se fosse simples assim... eu já teria feito.
- Desculpe. Não quis... me desculpe.
De forma a querer encerrar a conversa, me virei novamente para a janela do ônibus, e me fixei no oceano outra vez. Mas não por muito tempo.
- Está viajando a negócios?
- Não...
- Você trabalha na Cidade da Margem?
- Não. Eu sou de Liverpool.
- E o que você faz em Liverpool?
Dei um suspiro de forma a me conter com a intromissão da garota.
- Eu tinha... uma locadora de vídeos.
- Jura?! Eu adoro filmes! O melhor que já vi foi lançado agora. Se chama “Dunas do Escorpião”.
- Não conheço. Me desliguei disso...
- É ótimo o filme! Fala sobre uma família de rebeldes, no Oriente Médio, depois daquela guerra imbecil dos americanos.
- Parece um filme de valores baratos...
- Não é não! Tem mensagens ótimas. Eu vi pelo cinema-virtual, o ingresso foi menos de 20 euros.
- Bom pra você...
- Sim, foi um ótimo preço..
- Bem... talvez os homens possam nascer sem braços e pernas um dia... já que não precisam mais sair de casa nem para ir ao cinema...
Com a reposta de certa forma agressiva, a conversa havia pausado por breves minutos.
- Meu nome é Mareen. Qual o seu?
- Sage...
- Você gosta de ir às cidades satélites?
- Não...
- Então, o que você vai fazer em Cidade da Margem?
- Meu pai pediu para que viesse...
- Eu estou indo encontrar meus amigos. Eu nasci em Cidade da Margem, e amanhã eu faço 18 anos. Nós vamos comemorar. Você também nasceu lá?
- Não... como eu disse, eu sou de Liverpool. Meu pai veio para cá, depois de velho.
O ônibus de Sage e Mareen percorrera mais alguns quilômetros pela ponte que separava o continente da cidade satélite, através do mar. Por fim, a vista das janelas deixou de ser um vasto oceano, e passou a ser árvores secas, devido ao outono, e uma densa nevoa que não permitia a visão do que mais de 15 metros. Ainda dentro da floresta, Sage apertara o botão, pedindo para o ônibus parar. Pegou seu casaco, que estava em seu colo, despediu de Mareen de forma seca, e desceu do veículo, observando-o até sumir na nevoa.
Sage entrou no bosque, em uma trilha parcialmente escondida, pelas folhas caídas, e caminhando entre árvores e nevoa, o homem de barba rala e mal feita, roupas escuras e uma mochila velha, se aproxima de uma pequena casa de pedra, entre as árvores. Sage subiu os degraus rangentes e pôs-se a bater na porta, posicionado na varanda, até ser atendido por um homem de idade avançada, cabelos rasos e esbranquiçados, olhos avermelhados e profundas olheiras, indicando noites mal passadas.
- Sage... meu filho... demorou tanto.... – disse o velho, pausadamente, como se fizesse esforço para raciocinar.
- Pensei que a viagem fosse menos demorada. Faz anos que não viajo para cá.
Lá estava eu, na casa de meu pai, naquela sala aquecida pela lareira, com os pisos rangendo a cada passo que se dava. Aqueles sofás de couro que me traziam péssimas lembranças como encontro de família, ceias de natal, dias horríveis. Havia me esquecido de como era doloroso, visitar meu pai. Não sentia ódio por ele, mas simplesmente não queria me recordar de meu passado.
- Você ainda não contratou uma enfermeira? – disse Sage, olhando nos quatro cômodos da casa, pela sala.
- Sim.. eu contratei... mas... ela foi internada...
- Hum... parece que ela realmente sabia o que fazia.
- Não... ela foi afetada... pela falta... de sono...
- Falta de sono? Como assim?
- Algumas pessoas... estão sofrendo... da falha... de sono. Não conseguem... dormir... igual a você.
- Eu consigo descansar minha mente. O que não consigo é sonhar. Mas me parece que você também sofre, dessa tal falta de sono. – Sage conversava com seu pai, enquanto arrumava suas coisas, em um quarto abandonado na casa, com apenas uma cama velha.
- Parece que... a cidade toda... está assim...
- Hum.... me recordo de uma matéria que dizia sobre a insônia daqui, mas isso faz algum tempo.
- Bom... seja o que for... está piorando. Por isso... o chamei. Já que... até minha... enfermeira... foi afetada... talvez você... possa ajudar... seu velho.
- Já esperava por algo do tipo. – Sage reparou que na pia do banheiro havia inúmeros remédios para insônia. – Não fizeram efeito?
- Não... somente nos... primeiros dias.
- Há quanto tempo você não vai ao mercado?
- Desde que... a enfermeira... se foi. Já faz quase uma semana.
- Por que não chamou pela entrega?
- Ninguém... está fazendo... esse serviço...
Vi que deveria ir logo, pois se estendesse a conversa, ficaria cada vez mais irritado com os novos fatos, que essa tal falta de sono trazia. Peguei as chaves do carro de meu pai, e fui até o lado de fora, reencontrar a velha caminhonete. Era um carro do ano de 2015, creio eu, do ano em que meu pai havia formado na faculdade. Ainda fazia sua função, mas aceitava apenas a gasolina tradicional, e por isso era praticamente impossível usa-la todos os dias.
Sage sentou no banco acolchoado, e assim que colocou a chave na ignição, reparou que havia um jornal velho, no banco ao lado. Ao olhar a manchete do jornal, teve um sentimento que há muito havia esquecido. A manchete dizia que o número da nova raça que havia surgido, os híbridos, estava crescendo cada vez mais, e também o preconceito, assim como o número de assassinatos contra os mesmos. Aquela notícia fez com que Sage ficasse alguns minutos refletindo e balançando a cabeça, negativamente. Quem o observasse diria que um homem que aparentemente não se importava com nada, sentia um grande pesar com aquela notícia. Com o semblante fechado, Sage ligou o carro e seguiu a trilha, de volta à estrada.
FIM PARTE I
Moraes